Aqui estou eu "reciclando" o último conto que escrevi pro blog anterior, enquanto essa seca mental não passa.
E sim, eu sei que ficou confuso, mas de qualquer forma deixo aqui pra registrar.
Novamente: aceito críticas pra deixá-lo mais entendível.
Novamente: aceito críticas pra deixá-lo mais entendível.
-----------------------------------------------------
A quem velamos
Na esfera do Sonho, em uma sala de velório, um caixão já ocupado repousa sobre a mesa enquanto algumas poucas pessoas circulam em silêncio.
- Com licença, desculpe-me importuná-la em hora tão imprópria, mas acho que já nos conhecemos.
A mulher descola o olhar do chão e analisa o homem de terno escuro que recém chegara.
- Sim, parece que sim. Fomos apresentados quando ele, em sua companhia, cruzou comigo na rua um dia desses. - disse, apontando em direção ao caixão com o queixo. Após um breve suspiro, continua: - Veja como mesmo depois de morto podemos ver sua aura de pessoa respeitosa, leal, compromissada com... Do que ri?
- Sinceramente, o que vejo é uma pessoa bem diferente! Ali estão todos os sinais de quem passou a vida na boemia e em nenhum momento se deixou abater por apelos emocionais alheios.
- Era isso que me diziam até eu finalmente compreender. Por isso estou aqui velando aquela pessoa que morreu sem sequer ter existido fora da minha mente.
- É, parece que você compreendeu rápido o objetivo desta Capela. – disse ele esboçando um sorriso. - Sonho lúcido?
- Algo assim. Sei que na vida real ele está vivo. Aliás, você parece mais a par do funcionamento deste lugar do que eu.
- Sim. – respondeu secamente.
- Por que continua aqui então?
- Por acaso os funerais tradicionais têm mais lógica do que isso? Aqui, assim como quando acordados, sabemos que o repousa dentro do caixote nada mais é do que resquício das nossas expectativas, fantasias da linha temporal-imaginária que traçamos e...
- Caixão. – disse a mulher contendo a indignação.
- Como?
- Você falou caixote.
- Sim, que seja!
A mulher o olhou com um misto de pena e raiva, procurando palavras neutras para que seus sentimentos não transparecessem:
- Você certamente tem problemas em lidar com a perda.
- Tive até certo tempo... Circulei por diversas salas dessa Capela que se forma quando fechamos os olhos. Fui até em velórios de quem não conhecia...
- Não sabia que isso era possível!
- Mas é. As pessoas que velam vários tipos acabam se esbarrando por aí e mesmo não tendo muitos conhecidos em comum às vezes nos prestamos a apoiar um colega em algum funeral mais doloroso.
- Mas se você não conhecia o “morto" e todos que aqui são velados são a projeção de nossas expectativas frustradas, o que via, então dentro da urna funerária?
- Nada. Apenas um espaço vazio.
O diálogo que até então fluía naturalmente cessou. A mulher voltou o olhar novamente para o chão. Após alguns minutos de silêncio, retomou:
- Será que nós também temos uma sala em que estamos sendo velados?
- Imagino que sim. Todos os vivos têm. Até mesmo esse sacana aí deitado!
Novamente o silêncio se interpôs.
Apesar de pouco conhecer a mulher, o homem esperava por uma abrupta intervenção, realizada frações de segundos depois dessa premonição.
- Já velamos, consciente ou inconscientemente, tantas pessoas, e nunca tivemos a iniciativa de ir à nossa própria sala, ao nosso próprio velório. Quantas pessoas teriam lá? Quantas e quais imagens nossas foram feitas e desfeitas sem que notássemos? Quantos nos carregam nas costas sob o peso da desilusão? - disse como que para si mesma.
- Essa pergunta não me intriga tanto quanto saber em quantas dessas imagens criadas pelos outros nos agarramos para que o acaso não leve alguém que queremos bem ao nosso velório onírico.
- Você teria coragem de ir à sua sala? – ela pergunta absorta o suficiente a ponto de ele perceber que não era mais ouvido.
Inclinando-se à curiosidade da semi-desconhecida, o homem estendeu a mão e ambos caminharam rumo à saída da sala.
Atravessaram diversos corredores – corredores infindáveis - até cada um encontrar seu nome em uma porta. Olharam-se profundamente, desentrelaçaram as mãos, e giraram as maçanetas das portas que dariam para o caleidoscópio de faces que encontrariam em seus próprios caixões.
Esse texto é fantástico. Acho que já li em um outro blog seu e já tinha achado demais. É escrita de quem sabe o que faz. Sem contar que, para além da técnica, orienta por onde nossos pensamentos vão passear nos minutos após o fim da leitura...
ResponderExcluirUm beijo, e muitas muitas saudades!