sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Sem querer incomodar ninguém...

Trecho de “Uma invenção muito prática” - conto de Enrique Vila-Matas que compõe um dos 10 contos de seu livro “Suicídios exemplares”.


“Tão horrenda é a impressão fascinante que me deixou aquela boca de mágico e cantor, marcando assim minha existência, que me tornou a senhora que o senhor tem agora à sua frente: uma mulher que passa a vida em revista e descobre, não sem certa melancolia, que a perdeu por delicadeza, por não querer incomodar ninguém, e por se empenhar em passar por este mundo com passo de bailarina, leve, extremamente leve; sem querer incomodar ninguém, porque a vida já é complicada o bastante para complicarmos ainda mais a vida dos outros; sem querer incomodar ninguém, e sem poder evitar que me incomodassem, pois logo me surgiu um pretendente que a toda hora me dizia coisas como “sob o peso do amor, eu afundo”: um pretendente, enfim, mas muito chato, a quem eu correspondia com meu passo leve e um certo olhar de suave indiferença, até que, para não incomodá-lo mais, acabei aceitando-o como marido (pensei: se não for ele, será outro, tanto faz); sem querer incomodar ninguém, e por isso acatei a ordem fulminante de ter um filho, acatei porque não queria incomodar ninguém, muito menos meu marido, e o que aconteceu foi que esse filho, que descanse em paz o maldito, me incomodou muito; sem querer incomodar ninguém, e por temor de contar à humanidade inteira o horror daquela boca monstruosa do Barrymore, o criador de máscaras, boca enorme e profunda que afinal associei ao tédio profundo e enorme que domina nossa vida neste mundo de fraque e bocejo.” p.134

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