domingo, 6 de março de 2011

Primeira leitura do dia - Domingo de tédio.

Como se já não bastasse ser domingo - dia oficial do tédio - ainda é Carnaval.
Na televisão, a programação besta de sempre + desfile de escola de samba.


Por acaso levantei querendo ler Fernando Pessoa, e encontrei Lisbon Revisited (1926). Na verdade, a intenção era ler outra versão, a que manda todo mundo pastar (a de 1923)...


Mas esta também me encantou, embora esteja embriagada de tédio (coincidência?), desilusão e não-pertencimento.




Lisboa Revisitada (1926)
(Álvaro de Campos)



Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne



O que não sei que seja —
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.



Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram,



Acordei para a mesma vida que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta — até essa vida...



Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.



Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia
Sem leme;
Não sei que ilhas do
Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me daria ao menos um verso.



Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.



Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui


Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os
Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.



Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo—,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...



Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...



Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico velo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!...

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