domingo, 24 de outubro de 2010

Literatura de domingo

Acho que nada tem mais cara de domingo do que crônicas.
Talvez porque em alguma época da minha vida eu era obrigada a ler jornais aos domingos - diziam ser hábito necessário pra enfrentar o monstro Vestibular - e volta e meia eu me deparava com uma crônica.

Esses dias esbarrei em um livro da coleção "Melhores crônicas" da Global Editora. Crônicas de Ferreira Gullar. Aceitei-o.

Meu primeiro contato com o autor foi acidentalmente - em 99, creio eu - com uma poesia ("A vida bate") que ficou na minha cabeça por um bom tempo. Nessa época eu recém havia descoberto o poder de acolhimento da literatura e grudei com papel contact transparente a poesia do Ferreira Gullar no meu fichário quando fui morar em São Paulo. Eu não havia encontrado até então algo que descrevesse tão bem minha sensação naquele lugar - apesar da referência, no poema, ao Rio de Janeiro.

Alguns anos depois veio a decepção com o autor. Decepção não de ordem literária, mas política (Ferreira Gullar apoiando Roseane Sarney?!), mas essa seria uma discussão pra outro tipo de blog.

Enfim... Voltando ao assunto proposto: crônicas.

Gosto do ar despretensioso e poético das crônicas de Gullar. Gosto principalmente do modo impressionista como ele registra o cotidiano, a escrita direta da crônica que me faz lembrar do cheiro de jornal e da preguiça de domingos ensolarados - como hoje.

Separei algumas pra postar aqui e como indecisão é meu apelido, vou pseudo-deixar a coincidência escolher postando uma crônica que faz referência ao "aniversário" de 50anos do escrito.

Segue abaixo:


Verão
Ferreira Gullar

Aqui estou, neste esplendente dia de verão, reduzido ao meu corpo. Sem passado, sem sonho, sem fuga. Presente em minhas unhas, em minha pele, em meus cabelos. Eu e os demais habitantes de outubro coroado. Uma onça - não sei se já repararam - não tem costura. O verão, essa pantera, também não tem. E dentro dele estamos nós, prisioneiros de uma jaula feliz. O verão não tem municípios, nem governo, nem câmara, nem eleições. Está deitado ao lado do mar e aos pés da montanha selvagem. Azul e verde, sal e clorofila.
É possível que a esta hora dois ou três homens estejam matando alguém numa casa vizinha. Mas, pela minha janela, vejo os edifícios e uma árvore próxima cujas folhas começam a amarelar. Nada perguntamos um ao outro, eu e a árvore. Nos vemos e nos contentamos com isso: com nossa presença mútua sob o céu estridente. A brisa que sopra ocasional move as folhas e as roupas dependuradas na minha janela, e num mesmo movimento vacilam os ramos e voam os passarinhos. O mundo hoje não precisa de explicação.
Os livros, por sua vez, parecem pertencer a outra cidade. Mesmo os que ainda não abri e que vejo sobre a escrivaninha com suas folhas intactas, são antigos. Sei que um branco fogo dorme em suas páginas e que o nosso corpo, querendo, poderá acendê-lo. Mas para que acendê-lo nesta claridade ilimitada? Em meio ao verão, a chama da literatura bruxuleia e se apaga. Não se precisa de chave para abrir o mundo quando ele se dá a nós, escancarado, sem espessura e sem sombras. O verão dos livros é eterno, pode esperar.
O efêmero verão do dia 25 de outubro de 1960 trepida à nossa volta, urgente.
E no mais é aquela bandeja com frutas na mesa da sala. Dentro delas também arde uma flama - fresca e alimentícia. São o outro prato da balança solar. Não estão ali para ser pintadas, mas para que um homem as coma. E esse homem, por acaso, sou eu. Aliás, como aconselham os médicos: frutas e refresco, sombra e água fresca.



GULLAR, Ferreira. Ferreira Gullar: melhores crônicas. Seleção e prefácio de Augusto Sérgio Bastos. São Paulo: Global Editora, 2004.

4 comentários:

  1. Gostei mais de "A vida bate", que me faz lembrar "Os ombros suportam o mundo" de Drumond.
    Mas "Verão" também é interessante, apesar de "despretensioso" como você afirma.

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  2. Muito legal, uma crônica de um tema simples escrita com um português lindo!!! Adorei.

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  3. ui, acabei de me dar conta de que não só nunca escrevi no blog como nunca tinha entrado pra dar uma lidinha em alguma coisa =P

    bacana a crônica ;)

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