segunda-feira, 17 de maio de 2010

Latência

A maioria se habituara, mas ela sabia que eram tempos difíceis.

O multicolorido das prateleiras envernizava a realidade. Mesmo não alcançando os produtos que continham uma dose maior de felicidade, a maioria pensava que se estivessem em uma guerra não haveria tanta fartura.

Ainda que não utilizasse o microscópio (ou seria o telescópio?) da reflexão, Ana Luzia conseguia notar tudo aquilo.

Caminhando pelo supermercado durante as compras escolhia apenas aquilo que não a apetecia. A insipidez dos sabores era sua grande e inconsciente aliada para lhe lembrar a náusea que aquele mundo provocava.

No caixa ouviu um “bom dia” e antes que pudesse responder foi interrompida:

- Pagamento em dinheiro ou cartão?

Com as compras em mãos, Ana Luzia caminhava em direção ao seu prédio enquanto observava as pessoas. Podia vê-las portando telefones que perpetuavam a incomunicabilidade, aparelhos musicais tocando trilhas sonoras do silêncio que impregnavam o cotidiano. Toda aparelhagem em miniatura. A cada ano menor, assim como os desejos e as verdades.

As camadas de beleza em oferta camuflavam expressões de experiências marcadas nos rostos daqueles que transitavam. E eram faces tão parecidas! Podia jurar tê-las visto em algum anúncio de TV ou outdoor.

Ela poderia fazer perguntas sobre o que via - e sabia disso -, mas não ousava.

Sem aviso, a vertigem tomou conta de si. Não era uma sensação nova, mas seu motivo não era tão óbvio que pudesse ser descoberto pelos médicos.

Entre o cambalear dos pés pôde perceber: não era uma simples tontura. Era a correnteza do que deveria ser a afastando daquilo que já era e que ela forçava em permanecer.

Assim, evitou apoiar-se nas paredes para recobrar o equilíbrio como sempre fazia. Simplesmente deixou-se levar e seus movimentos a guiavam para uma via oposta àquela que sempre seguiu.

Conforme ia se afastando do antigo caminho notava que seus pés retomavam a coerência e que a euforia a preenchia, pois sua visão passou a conhecer uma nitidez que nunca imaginou existir.

“Então é assim que as coisas são!” – pensou.

As cores em volta tornavam-se cada vez mais intensas, mas não feriam os olhos – pareciam mesmo acordá-los.

A sonoridade uniforme do ambiente de súbito deu lugar a um forte estampido e aos poucos sentiu em sua boca o gosto de sangue.

Luzia sorriu com a sensação de finalmente experimentar o sabor da vida. Da vida em seu estado verbal.

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Texto publicado originalmente no dia 03/04/2008 em Literatura Informal

2 comentários:

  1. Esse texto é de um beleza admirável. Muitas vezes, estamos tão habituados com o algumas coisas que não percebemos como elas realmente são, mas de repente abrimos os olhos e nos surpreendemos: "Então é assim que as coisas são!".

    Parabéns pelo blog. Voltarei sempre por aqui.

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