sábado, 16 de fevereiro de 2013

Claraboia

Uma obra póstuma português José Saramago. Acho estranho esse termo, "obras póstumas". Até parece que o morto continua escrevendo lá do além, mas enfim...

Saramago escreveu este livro quando ainda não era famoso, e a editora deu um "perdido" nele. Muitos anos depois, quando o escritor já tinha fama - de bom escritor - a famigerada editora liga falando "ah, agora a gente quer publicar". Há rumores de que Saramago ficou muito puto indignado e proibiu a edição. Por isso Claraboia só saiu após sua morte.

É a história de várias famílias que moram em um mesmo edifício. Temos uma variedade de personagens com traços de personalidade diferentes, porém os moradores do local não primam por uma vida de opulência, digamos assim. Com exceção da faladíssima moça (nem tão moça) de um dos apartamentos que recebe todas as noites a visita de um homem misterioso...

Saramago vai nos apresentando aos poucos os moradores e as pessoas com quem se relacionam, entremeando uma família com outra. Quem se perde fácil creio que encontrará um pouquinho de dificuldade ao acompanhar essa dinâmica, mas nem tanto assim quanto na história de Game of Thrones, claro! Só para quem realmente possuiu algum tipo de déficit de atenção. A linguagem é cotidiana, simples e direta - quanto a isso, problema nenhum para interpretar.

O interessante é que cada núcleo irá apresentar um apogeu - alguns previsíveis e outros nem tanto assim, como por exemplo a história da família das quatro mulheres "solteironas" - e um fechamento, talvez não aquele que gostaríamos, tornando a história, como um todo, imprevisível. A sensação que fica após a leitura é de "ué, já acabou?".

Talvez essa sensação se tenha dado porque estamos muito acostumados com histórias hollywoodianas, onde transpira emoção, adrenalina e situações fantásticas até. Claraboia não apresenta nada apoteótico do gênero, mas é uma leitura interessante, com vários diálogos interessantes e reflexivos do personagem do sapateiro - com o qual Saramago começa e termina a história.

Separei alguns trechos:

Quando fores crescido, hás de querer ser feliz. Por enquanto não pensas nisso e é por isso mesmo que o és. Quando pensares, quando quiseres ser feliz, deixarás de sê-lo. Para nunca mais! Talvez para nunca mais!... Ouviste? Para nunca mais. Quanto mais forte for o teu desejo de felicidade, mais infeliz serás. A felicidade não é coisa que se conquiste. Hão de dizer-te que sim. Não acredites. A felicidade é ou não é.

...
A sua presença era como uma penitência, inútil como todas as penitências e apenas compreensível porque era voluntária.

...
As palavras ditas, ainda que não ouvidas, ficam no ar, pairam na atmosfera, são, por assim dizer, respiradas, e produzem efeitos tal como se tivessem encontrado no seu caminho ouvidos que as entendessem.

...
Todos trazemos ao pescoço a canga da monotonia, todos esperamos, sabe o diabo o quê! Sim, todos esperamos! Mais confusamente uns que outros, mas a expectativa é de todos... O comum das gentes!... Isto, dito assim, com este tom desdenhoso de superioridade, é idiota. Morfina do hábito, morfina da monotonia...

...
Nem tudo o que parece, é, nem tudo o que é, o parece ser. Mas entre o ser e o parecer há sempre um ponto de entendimento, como se ser e parecer fossem dois planos inclinados que convergem e se unem. Há um declive, a possibilidade de escorregar nele, e, assim acontecendo, chega-se ao ponto em que, ao mesmo tempo, se contacta com o ser e o parecer.

...
— Levei muitos pontapés, sofri demasiado. Não farei como o outro, que dava a face esquerda a quem lhe esbofeteava a direita...
Silvestre interrompeu, com veemência:
— Nem eu o faria. Cortaria, sim, a mão que me agredisse.
— Se todos procedessem dessa maneira, não haveria no mundo quem tivesse as duas mãos. Quem é batido, se não bateu ainda, baterá um dia. É uma questão de oportunidade.
— A essa maneira de pensar dá-se o nome de pessimismo, e quem assim pensa ajuda os que querem o desamor entre os homens.
— Desculpe se o magoo, mas tudo isso é uma utopia. A vida é uma luta de feras, a todas as horas e em todos os lugares. É o «salve-se quem puder», e nada mais. O amor é o pregão dos fracos, o ódio é a arma dos fortes. Ódio aos rivais, aos concorrentes, aos candidatos ao mesmo bocado de pão ou de terra, ou ao mesmo poço de petróleo. O amor só serve para chacota ou para dar oportunidade aos fortes de se deliciarem com as fraquezas dos fracos. A existência dos fracos é vantajosa como recreio, serve de válvula de escape.

2 comentários:

  1. Sabe aquele livro que sempre te encara quando você chega na livraria, mas por algum motivo você nunca levou? Essa é minha relação com Claraboia. Sempre olho pra ele e penso: vou pesquisar sobre o que se trata e depois compro.
    Agora que já poupei a parte da pesquisa lendo esse post, da próxima vez que me encontrar com ele, vou comprar.
    Gosto desses livros que falam sobre as relações e observações humanas e o Saramago é mestre nisso!
    Adorei o post ;)
    Beijos!

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  2. Obrigada, Tati, acho que você irá gostar, Saramago dificilmente decepciona (falou "A" entendida #not). Obrigada pelo comentário e volte sempre.

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