segunda-feira, 22 de novembro de 2010

D'As Ondas a “A Queda”

"As Ondas" de Virgínia Woolf foi o livro sugerido para leitura de junho.
Devido a compromissos, a falta de paciência pra ler mais de 100 páginas em pdf e o desaparecimento súbito do livro das bibliotecas de Florianópolis, o plano acabou sendo de adiado para cancelado.

O substituto foi encontrado aleatoriamente durante a busca pela obra da Woolf na Barca dos Livros . Encontrei "A queda" de Camus.

Meu primeiro contato com o autor se deu há exatos 10 anos, seguindo uma sugestão de leitura, com "O estrangeiro". Lembro que o livro me deixou uma sensação amarga perante o modo como o autor concebia o indivíduo e a sociedade.

Tentada a um novo enfrentamento com Camus, defino para leitura de outubro "A queda".

A narrativa da obra é bem interessante. É um diálogo em que se retrata apenas um interlocutor: Jean-Baptiste Clamance - um nome que o próprio personagem não confirma ser verdadeiro. O outro? Um desconhecido encontrado em um bar em Amsterdã ou também, dependendo do grau de identificação com o livro, o próprio leitor.

De maneira geral, a história gira em torno da mudança ocorrida na auto-percepção de Jean-Baptiste após um fato que trouxe à tona toda a teatralidade daquilo que sempre pensou ser. Seu aspecto atraente e atlético para as mulheres, sua maneira gentil e generosa para lidar com desconhecidos, sua estabilidade financeira e profissão prestigiosa – ou seja, tudo o que fazia dele um “vencedor” e “nobre de espírito” - desmoronaram após uma noite em que sozinho às margens do Rio Sena ouve uma jovem lançar-se ao rio e pedir por socorro, mas por encontrar-se sozinho – sem as plateias que tanto estimulavam sua “generosidade” – e sem disposição para arriscar sua própria vida, decide não tomar nenhuma atitude para salvá-la.

A partir disso, a sensação de incongruência com aquilo que anteriormente considerava sua essência moral e uma risada de origem desconhecida que o passara a acompanhar fizeram com que Jean-Baptiste mudasse o rumo de sua vida.

"O certo é que, depois de longos estudos sobre mim mesmo, concebi a duplicidade profunda da criatura. Compreendi, então, à força de remexer na memória, que a modéstia me ajudava a brilhar, a humildade a vencer, e a virtude a oprimir. Fazia a guerra por meios pacíficos e obtinha, enfim, pelo desinteresse tudo o que cobiçava. [...] A obrigação em que me encontrava de esconder a parte viciosa da minha vida dava-me, por exemplo, um ar de frieza que se confundia com o da virtude, a minha indiferença proporcionava-me ser amado, o meu egoísmo culminava nas minhas liberalidades." (p.66-67)

Também após às quedas - da jovem no rio e à sua própria em sua versão mais bruta - percebeu que seu entorno não era tão simples quanto imaginara anteriormente. Passou a perceber inimigos, zombarias e indisposições de outros com relação à sua pessoa. O julgamento alheio passou a sufocá-lo.

"Como é difícil fugir ao julgamento, e melindroso fazer, a um só tempo, admirar e desculpar a própria natureza, todos eles procuram ser ricos. Por quê? O senhor já se perguntou isso alguma vez? Pelo poder, certamente. Mas, sobretudo, porque a riqueza nos livra do julgamento imediato, nos retira da multidão do metrô para nos encerrar numa carroceria toda niquelada, nos isola em vastos jardins particulares, carros-leitos, camarotes de luxo. A riqueza, caro amigo, não é ainda a absolvição, mas uma suspensão de pena, sempre fácil de conseguir..." (p.65)

"A única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás, ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. A partir de então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto - já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias."(p.87)

Tentando lidar com essa nova sensação, acabou por se mudar para Amsterdã, deixando seu renome profissional na França para trabalhos menos gloriosos (mas que mantinham seu conforto material), assumindo seu papel de “juiz-penitente” - como passou a se denominar. Torna-se frequentador do bar Mexico-City com o objetivo de encontrar alguém para quem possa denunciar a humanidade e ao mesmo tempo apontar-se como parte dela, tornando-se, portanto, “um profeta vazio de tempos medíocres”. Acomoda-se, então, percebendo que:

“Aceitei a duplicidade, em vez de ficar desolado com ela. Nela me instalei pelo contrário, e nela achei o conforto que busquei durante toda a minha vida. No fundo, errei ao dizer que o essencial era evitar o julgamento. O essencial é poder permitir-se tudo, mesmo se for preciso proclamar, de vez em quando, em altos brados, a própria indignidade. Permito-me tudo, de novo, e sem rir, desta vez. Não mudei de vida, continuo a amar-me e a me servir dos outros. Só que a confissão das minhas culpas permite-me recomeçar de uma maneira mais leve e gozar duplamente, primeiro a minha natureza e, em seguida, um encantador arrependimento." (p.96-97)”

Após todo esse processo, longe de recolher-se à culpa cristã, a última frase do livro nos mostra a aceitação total do protagonista perante o fato que provocou sua queda:

“Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não pararam de ressoar nas minhas noites e que eu direi, enfim, pela sua boca: 'Ó jovem, atire-se de novo na água, para que eu tenha, pela segunda vez, a oportunidade de nos salvar a ambos!' Pela segunda vez, hem, que imprudência! Imagine, caro colega, que nos levem ao pé da letra? Seria preciso cumprir. Brr...! A água está tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde demais, agora, será sempre tarde demais. Felizmente!”

…........

É patente a tentativa de Camus de "alfinetar" o leitor, tentando nos convencer, através do exemplo do protagonista - que poderia ser de tantos outros , inclusive nós mesmos -, do narcisismo embutido na prática de gestos convencionados culturalmente e da angústia causada pela liberdade e possibilidade de julgamento pelos outros.
Ao contrário d"O estrangeiro", durante minha primeira leitura, dei muitas risadas com o sarcasmo do Jean-Baptiste e curti cada frase ácida colocada. Confesso que perceber isso me deixou preocupada... Olhar com familiaridade narrativas sobre a degradação do ser humano nem sempre é uma boa constatação... Talvez seja sintoma da minha própria Queda – o que obviamente já não deixa a obra tão divertida...


........

Uma animação sobre "A queda" - aproveitando a história e ambiguidade do título quando traduzido para o inglês.


2 comentários:

  1. Sórdidos, sórdidos!!! Isso que nós, humanos, somos! Camus desnudou, desmistificou a alma humana - aquela que nos gambamos ser a mais evoluída, a única diferenciada e superior ao "resto" dos animas! Mas sim, é a única diferente, pois é a única que é torpe!
    Selecionei alguns trechos da obra para reflexão particular, que colocarei aqui:
    "[...] aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não exige nenhum compromisso. [...] A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meios de nos livrarmos dela, temos de enfrentá-la. Sobretudo, não acredite que seus amigos lhe telefonarão todas as noites, como deviam, para saber se não é precisamente essa noite em que decidiu suicidar-se ou, mais simplesmente, se não tem necessidade de companhia, se não está com vontade de sair. Oh, não, se telefonarem, pode ficar certo, será na noite em que já não está só e em que a vida é bela".

    “Já reparou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabaram de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam mais a boca cheia de terra! A homenagem vem, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta”.

    “[...] o verdadeiro amor é excepcional, dois ou três em cada século, mais ou menos. No resto do tempo, há a vaidade ou o tédio”.

    “Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos, com a nossa morte. Enquanto vivos, o nosso caso é duvidoso, só temos direito ao seu ceticismo”.

    Deleitem-se!

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  2. AH, a musiquinha do video é sinistra. Me lembra um pianinho de brinquedo que tive quando era criança. Faz justiça a todo o sentido da obra.

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