terça-feira, 24 de agosto de 2010

Trocas

- Papai, aqui está o relógio que me pediu.

O homem afixou o relógio na parede e caminhou para a sala.

Ainda deitado Onofre olhou para os ponteiros. Recordou de seu antigo relógio de pulso que a pouco havia estragado.

Não era à toa. Há 25 anos aqueles tique-taques haviam se compassado com sua vida.

Assim que seu relógio parou, o velho tentou consertá-lo, mas a complexidade dos mecanismos e a pouca firmeza das mãos impediram a empreitada.

Como o dinheiro que contava se tornou uma espécie de paga à solidariedade da família e suas pernas não podiam ir muito longe, pediu que lhe comprasse outro.

E lá estava. O relógio de pulso se transmutou no de parede.

Era o Tempo separado de suas pulsações que o observaria implacavelmente dia após dia.

Esse novo Tempo passou a demarcar o início de uma era de poucas necessidades após uma trajetória de tantos desejos construídos, desconstruídos e saciados. Agora o que queria era apenas substituir o que falhava por algo que funcionasse sem complexidade, mas com precisão.

Nesse momento, lembrou-se da troca do radinho de pilha acontecida nos primeiros meses de sua ida para a casa de seu filho.

O rádio que havia levado parou de funcionar e como nada o acompanhava tão bem quanto as músicas caipiras, trilha sonora de grande parte de sua vida, pediu a substituição do aparelho.

Recebeu um pequeno rádio azul, que podia confundir-se com um brinquedo infantil.

Tentou não mostrar a decepção ao filho diante do pacote entregue.

Não teve coragem de reclamar, pois não queria desmerecer o ato de quem o levara para a casa para que não se sentisse sozinho.

Onofre sabia que uma solidão não neutralizava a outra, que duas solidões podiam conviver como água e óleo - separadas por uma fina película; intangíveis -, porém comovido com o intento aceitou o convite.

Lá pôde ver um pouco mais seu neto. Um jovem responsável e preocupado. Um tipo que faria orgulho a qualquer família, mas que a seu avô causava pena. Não conseguia entender como, a despeito de tantas facilidades que o mundo atual oferecia, o presente nunca se apresentava suficiente para o rapaz. Para que ficar às voltas de um futuro - já obsoleto antes de existir de fato?, pensava Onofre.

13:58. A cada minuto sentia-se como uma figura desbotando, uma identidade acumulada por mais de oito décadas que se esvaziava progressivamente na troca de pequenos objetos.

Após duas voltas do ponteiro, levantou-se da cama e foi atrás da nora para agradecer o objeto dado.



Dois anos depois encontrava-se pendurado na mesma parede o retrato do velho não mais vivo.

A imagem de Onofre estava reforçada com cores intensas aplicadas pela impressora a laser que não pôde emprestar suas tintas aos olhos daqueles que estiveram próximos durante os últimos anos da vida do velho.

2 comentários:

  1. "Romeu, Romeu".
    Isso pode soar cômico, mas não nesse comentário.

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  2. Oie ^^

    Nossa, tenho medo da velhice, perceber que os nossos desejos se abstem.E que nos sobram as vezes apenas uma certa carencia....por atenção.

    A velhice parece que nos mostra que por mais ativos que tentamos ser, somos apenas coadjuvantes de nossas prórpias vidas!

    Assustador...

    Niemi.

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