segunda-feira, 28 de junho de 2010

Elogio à mediocridade

O despertador protestava a vinda de um novo dia, enquanto Domício fazia-se levantar tomando cuidado para que o seu pé direito alcançasse primeiro o chinelo. O dia merecia ser bom, como qualquer outro. “Como qualquer outro”, pensava satisfeito.

Depois de seu meticuloso banho, foi tomar o café da manhã.

Na mesa estavam o café no bule, o açúcar na xícara, a margarina no pão, e a prece estampada na embalagem da padaria. Tudo em seu devido lugar.

Há vinte anos morava naquela casa e se por ventura alguém mudasse os móveis de lugar poderia ver a marca de cada um deles no chão registrando a sua origem. Aos sábados, durante a noite,
Domício gostava de apagar todas as luzes da casa e caminhar. Passava horas contabilizando quantas vezes esbarrava em um móvel e divertia-se tal como se jogasse um desses jogos de modernos.

Gostava da sua casa. Tudo era como queria que fosse.

Às seis horas da manhã ia para seu trabalho. Sabia que ao chegar iria sentar-se em seu cubículo e se manteria lá até confundir-se com ofícios e carimbos. O serviço não era também um mau lugar, tanto que até saudades sentira nos seus dois meses de férias passados na reclusão do seu lar.

A porta de saída de casa, tão pouco usada nesse meio tempo, fez entrar uma nova luz. Talvez não fosse nova, mas ofuscava. O painel eletrônico marcava uma temperatura ambiente suave. Não entendendo como o clima aparentemente opressor fosse ameno, Domício parou e esperou a marcação do nível de poluição do ar. Certamente deve estar bem alto - somente isso justificaria essa falta de completude no trabalho de seus pulmões. Nível baixo. O painel estava com defeito - pensou. Muitas coisas são assim além-porta.

O chão parecia empurrar seus passos para frente e a multidão multicolorida que transitava nas ruas embaraçava sua visão. Não conseguia sequer enxergar os detalhes dos rostos. Só conseguia visualizar peles. Sem olhos, bocas e qualquer outro canal de ligação com o mundo exterior.

As janelas dos prédios – não entendia o porquê de tantas janelas – lhe pareciam mostrar a visão externa de um monstro que o engolira. Mas, não... não estava dentro de um organismo. Até o mais inferior dos animais tem uma morfologia plena de sentido. Agora, aquele lugar onde estava não era guiado pela menor razão!

O caos não lhe causava euforia, mas sim uma vontade imensa do Retorno.

Precisava, no mínimo, de sua casa e ao girar seu corpo buscando retornar ao ponto de origem – não se sabe se o giro fora de 180° ou muito mais que isso - pôde perceber que não saíra da frente da porta de sua casa.

Com alívio identificou a maçaneta. Entrou no recinto - no seu recinto - e re-sentindo a ordem sentou-se na poltrona. Percebendo que seus batimentos cardíacos voltavam ao ritmo normal, tentou entender tudo o que havia se passado. Não conseguiu. Olhou ao redor, visualizando a sala.

– Tudo está em seu lugar! – pensou aliviado.

Sim... Tudo o que havia estava em seu lugar. Em seu lugar tudo havia... menos ele próprio.

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Texto publicado originalmente no dia 11/10/2006 em Literatura Informal

2 comentários:

  1. A literatura Thaysiana já pode ser reconhecida pelo tipo psicológico dos personagens super introspectivos, perturbados, pelo estilo da escrita e nomes peculiares dos personagens.

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  2. aqui fica um convite para você participar da nossa seletiva do Poema, Contos e Crônica do Papéis de Circunstâncias http://papeisonline.blogspot.com/

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