O amigo Vinicius enviou a algum tempo um documento do Word intitulado "O conto de um homem solitário". Segundo ele, um amigo seu leu o texto que ainda não estava finalizado e se deu ao direito de continuá-lo ou a dar uns "pitacos". Combinaram de revezar para terminar o conto, mas parece que não deu certo. Não sei se o motivo foi falta de tempo "para essas coisas menos importantes" da vida ou mero esquecimento.
Enfim! Fui convidada a finalizar e aceitei na hora! Confesso que após ler pela primeira vez, tive ideias totalmente imprevisíveis de como a história poderia terminar. Até ri sozinha aqui em casa, imaginando o Vinicius pê da vida com a subversão de tudo que já tinha sido criado (sim, sou "meio" esquizo).
Sem mais delongas, eis no que culminou a experiência. Desde já peço desculpas (mwahaha - risada maligna) ao amigo caso o fim não tenha sido de seu agrado :D
...
O CONTO DE UM HOMEM SOLITÁRIO
Era uma praia
extensa, como nunca vira igual. Acostumado que estava aos litorais constituídos
de pequenas faixas de areia de onde, quase sempre, se avistavam ilhas e
escolhos, aquilo lhe impressionava pela vastidão. Já era noite. O horizonte e o
céu se misturavam num só espetáculo de trevas. O cenário era muito bonito. A
ocasião parecia perfeita. Tudo o que precisava fazer era se levantar do banco
de madeira em que estava sentado, caminhar até o mar, se jogar, nadar até uma distância
conveniente e, daí, unir-se à eternidade...
Afinal de contas, sempre sentira que
pertencia muito mais ao mar do que a terra. Parecia que as águas o chamavam.
Parecia que o firmamento o repelia. Talvez fosse aquele o momento de se deixar
levar pelo gigante oceano. E livre estaria de toda a angústia.
Mas não seria tão simples. Por mais
que se sentisse dotado de uma total insignificância, sabia que sua morte atingiria
a alguns de maneira trágica. O suicídio, às vezes, parece um ato de egoísmo. É
como se livrar de toda a dor que se sente, provocando uma dor ainda maior
naqueles que permanecem, naqueles a quem se ama, e pelos quais se é amado. Toda
essa rede afetiva chega a ser uma prisão, da qual, por compaixão, não se sai
facilmente.
Assim, naquele banco, entre a terra
opressora e o mar libertador, teve vontade de chorar. Mas nem isso conseguia.
Os pensamentos se alternavam de maneira frenética e, em meio ao caos, chegava a
pensar se seus motivos não seriam, afinal, risíveis. Vivia num mundo em que muitos
padeciam de fome e frio, um mundo de guerras, massacres, preconceitos,
violência sem fim. E, no entanto, angustiava-se por mais uma tentativa de
conquista amorosa que havia fracassado...
Vivemos em um universo de
probabilidades. Algumas coisas são tão prováveis que a diferença entre a
possibilidade de acontecer e de não acontecer chega a ser colossal. Pensemos
numa pessoa citadina. Ela respira um ar poluído, ingere uma diversidade enorme
de alimentos, muitos dos quais de qualidade duvidosa, ela se estressa e também
interage com pessoas doentes. Qual a probabilidade de, algumas vezes na vida,
ter que ir a um hospital tratar da saúde? Quase cem por cento. Qual a
probabilidade de, em um dia, acontecer, ao menos, um acidente de carro pelas
estradas do país? Quase cem por cento.
Agora pensemos nas pessoas vivendo
em sociedade. Imaginemos, por exemplo, um homem e sua rotina, desde a infância:
amigos, escola, depois os cursos, depois a universidade, daí os trabalhos, os
momentos de lazer, sempre rodeado de outras pessoas, sempre interagindo... Qual
seria, então, a probabilidade de, em alguns momentos, entrar em contato com
pessoas pelas quais venha a se apaixonar, e nas quais encontre reciprocidade?
Quase cem por cento. Quase...
A matemática é infalível. Deem um
por cento de chance de que algo aconteça, e eis que pode vir a acontecer. Nada
impede que uma pessoa venha a passar uma vida inteira sem ter de ser
hospitalizada. Uma grande sorte! Nada impede que tenhamos um dia sem lágrimas
derramadas por alguém que se machucou ou veio a falecer devido a um acidente de
trânsito. Um dia para ser celebrado! Nada impede que uma pessoa passe uma vida
inteira sem encontrar reciprocidade no amor. Que lástima!
E assim, sentado em um banco junto
ao mar, procurava se conformar com o fato de fazer parte dessa porcentagem
ínfima. Poderia ser apenas isso, uma questão matemática. Parecia ser o mais
razoável a se pensar. Afinal, em que mais acreditaria? Karma? Destino?
Propósito de vida oculto? Castigo divino (e um princípio de risada lhe provocou
pequenos espasmos, ao pensar nisso)?
Algumas vezes, um raio de esperança
cortava brevemente os céus do pessimismo crônico. Afinal, a história nos dá
exemplos de homens que, ainda tardiamente, encontraram alguma felicidade no
amor. Luis Carlos Prestes, por exemplo, teve em Olga sua primeira mulher, já
contando então com alguns bons anos de idade. É certo que o desfecho dessa
aventura foi um tanto trágico, mas não se pode negar que, por algum tempo,
nosso militar rebelde teria conhecido o conforto da paixão recíproca.
Quem sabe se não estaria se
angustiando à toa, se na verdade, escrito nas estrelas, não estaria uma grande
história ainda a ser vivida, uma relação digna do mais belo livro, ou filme?
Era difícil de acreditar.
“Você é uma pessoa maravilhosa, mas
eu o considero um amigo”. “Eu já tenho namorado, e eu gosto muito dele”.
“Procuro alguém que compartilhe dos mesmos ideais religiosos que eu”. “Não
quero te magoar”. Esses eram cânones, ou mantras que, pela enorme quantidade de
vezes que já haviam sido repetidos, pareciam ecoar constantemente em sua alma,
como vozes do além, diabólicas, lembrando-o sempre de que era aquilo que a vida
lhe havia reservado.
Que seja! Era-lhe negado o amor?
Pois não precisava dele. Inúmeras são as outras faces da vida. Há tanto a
aprender, tanto a vivenciar, tanto a criar, tanto a fazer, tanto pelo que
lutar... Por que alguém se abateria por lhe faltar apenas um aspecto da vida?
Esqueçamos o amor - e viva todo o resto!
Mas nunca foi tão simples. A solidão
é cansativa. A solidão é como um parasita que suga toda a energia de alguém.
Tenta-se abstrair, tenta-se pensar apenas em outras coisas, mas ela parece se
alimentar, também, dos hiatos entre os momentos de tristeza. Um homem solitário
é aquele que mais facilmente se apaixona. É quando um turbilhão de emoções se
apossa de seu ser e, em sua ingenuidade, chega a acreditar que sua sorte está
prestes a mudar, como alguém que vê o primeiro raio de sol depois da
tempestade.
A cada vez que dá errado, é como se
esse monstro da solidão se tornasse maior e mais terrível, e é como se o homem
se tornasse ainda menor e mais frágil. E então se torna ainda mais difícil
executar os planos, realizar os sonhos, tornar-se útil, enfim, viver... Afinal,
tudo parece perder o sentido.
Assim ele ia refletindo, enquanto as
ondas massageavam a costa e as poucas estrelas visíveis vagavam pelo céu.
Estava ele numa parte da praia muito pouco visitada. Era uma sexta-feira, e a
maior parte das pessoas estava espalhada pelos “points” daquele bairro. Quando
ali chegara, caminhando sem destino, não havia ninguém. Agora, ao despertar
brevemente de sua angústia e de seu diálogo interior, percebera a presença de
uma figura peculiar, no banco ao lado. Estava sentada, sozinha, lendo um livro.
Era uma moça, de pequena estatura. Vestia um vestido leve, verde musgo, sem
quaisquer figuras ou estampas, que roçava em seus pezinhos, não apoiados no
chão, mas na borda do próprio banco. Assim, encolhida, estava totalmente
absorta nas palavras de quem quer que fosse o autor. A leve brisa chegava a
balançar seus cabelos ondulados e um tanto volumosos.
Um breve momento reparando naquela
moça e o homem pensou: “Está aí alguém por quem me apaixonaria facilmente”.
Afinal, a roupa que usava e a maneira em que mantinha os cabelos já denotavam
alguém que não se submetia à ditadura da aparência, presente em nossa
sociedade. Além disso, alguém que escolhesse, numa sexta à noite, ler um livro,
tendo por som ambiente o chiado das ondas e por teto as estrelas do céu ao
invés de sair para as tais “baladas”, já trazia consigo algo de interessante.
Parecia ser linda. Seu rosto pôde
ser vislumbrado num momento em que repousou o livro sobre os joelhos, olhou
para o céu e suspirou profundamente, obviamente por conta de alguma passagem no
texto que a fizera refletir.
Aqueles poucos elementos observados
foram o suficiente para constatar que, provavelmente, aquela era uma ótima
pessoa. Mas logo seus olhos se voltaram para o mar, fechando-se em seguida. Ele
sabia que, não importava quem fosse aquela moça. Logo ela seguiria seu caminho,
e ele, o seu.
Ficou assim por um bom tempo, quase
adormecido. Parecia que, a simples imagem daquela moça havia lhe acalmado um
pouco. A monotonia agradável daquele ambiente o havia colocado numa espécie de
torpor. Mas não pôde deixar de sentir, de repente, um vento bem mais forte
vindo de seu lado direito, de onde estava aquela moça. O tempo deveria estar
virando. Abriu então os olhos, olhando para baixo, a tempo de ver passar entre
os seus pés um pedaço de papel retangular, indo parar embaixo do banco. E logo
viu dois pezinhos calçando sandálias artesanais. Levantou o rosto. E ali estava
a moça, encarando-lhe. Em seu rosto havia um sorriso, mas também havia uma
lágrima:
_ Boa noite! Você poderia pegar meu
marcador de livros, por favor? Está embaixo do banco!
Imediatamente ele se abaixou, pegou
o marcador, entregou-o à moça e, curioso quanto àquela lágrima, perguntou:
_ Está tudo bem?
_ Está sim! _ disse a moça, rindo _
Estou chorando por causa do livro que acabei de ler, que é muito triste!
Instintivamente o homem procurou
olhar para a capa do livro, e eis que era um exemplar da obra “Os Trabalhadores
do Mar”, de Victor Hugo.
_ Entendo. Também chorei ao terminar
de ler esse.
_ Sério? Nunca conheci alguém que
tivesse lido este livro.
_ É meu autor preferido!
_ O meu também! Que coincidência,
hein! Dois apreciadores do Victor Hugo se encontrarem, assim...
_ E por causa de um marcador de
livros!
_ Você se importaria se eu me
sentasse aqui, e se conversássemos um pouquinho? Não é todo dia que podemos
conversar com pessoas que se interessam pelas mesmas coisas que nós.
_ Por favor, sente-se! E concordo
com o que disse!
_ Como se chama?
_ Arthur. E você?
_ Eu me chamo Maria Luna. Muito
prazer em conhecê-lo, Arthur.
_ Um nome bonito, devo dizer...
_ Obrigada, Arthur! Sabe... Acho
que, a partir de hoje, sempre que eu olhar para o mar, me lembrarei do
Gilliat...
_ Tive esse mesmo sintoma. Olho para
o mar e quase consigo ver as Douvres, e Gilliat conduzindo a Pança em direção a
elas...
_ Será que já existiram pessoas como
ele?
_ Talvez ainda existam. E se
existem, é quase impossível vir a tomar conhecimento delas. Em parte por causa
da pouca quantidade. Em parte porque, é próprio dessas pessoas, o anonimato, a
introspecção... Acho que na vida dessas pessoas as coisas acontecem muito mais
em seus interiores do que fora deles... Sendo que o que quer que deem ao mundo,
é perfeito! Por ser perfeito, não lhes engrandecem, mas engrandece ao próprio
mundo!
Arthur disse essas palavras olhando
para o mar, e assim permaneceu por algum tempo, após terminar. Então notou o
silêncio e virou seu rosto para Maria, percebendo que ela o contemplava, com a
boca semiaberta.
_ Você fala de um jeito tão diferente,
Arthur!
Ele, então, não soube o que dizer.
Toda aquela angústia, todas as preocupações e medos lhe arrebataram de uma só
vez. Porque ele sabia que passaria a pensar em Maria. Sabia que, ainda que
nunca mais a visse, seu rosto, seus trejeitos, expressões e palavras não
abandonariam sua memória. Sabia que, afinal, continuaria sozinho... Mas sabia também
que não era culpa dela. Por isso respirou fundo e resolveu prosseguir com o
diálogo.
No lapso de tempo em que se afundava
em seus sentimentos de angústia para depois retornar à realidade, não percebeu
que Maria Luna já não estava mais presente. Somente o marcador de livros
indicava que por ali esteve alguém acompanhado pela leitura. Teria sido uma
miragem, alucinação?
“Siga-me”,
leu no verso do objeto. Na areia observou que pegadas faziam uma trilha até as
ondas. Seguir as pegadas?
Chegou até onde a água batia
suavemente em seus joelhos, e a Lua cheia iluminou um tecido verde que flutuava
ao redor de si. Arthur não conseguia, não queria acreditar no que a situação
parecia dizer-lhe aos gritos.
Verdadeiro desalento invadiu seu
ser, e sem pensar em outras possibilidades seguiu, inconsciente, ao chamado de
siga-me. Mergulhou num oceano de ondas geladas e nadou até onde suas forças o
levaram. Depois tudo se tornou lento e a consciência escureceu.
Não sabia precisar quanto tempo
ficara desacordado. Encontrava-se perto de uma rocha em pleno alto mar, onde
havia uma silhueta feminina imóvel. O luar envolvia a figura e a inundava em
uma atmosfera mágica, de sonho.
Ainda estaria
vivo? Não entendia como fora parar naquele lugar, aparentemente muito distante
de toda a terra existente no mundo.
Aproximou-se da mulher ali parada e
reconheceu Maria Luna. Seus olhos eram os mais profundos que já vira; mais
profundos e enigmáticos que o próprio oceano. Tocou levemente a testa de seu
recente amigo e então aconteceu algo surpreendente.
Como se revivendo a vida a partir da
primeira vez que se apaixonou, Arthur teve a perspectiva da probabilidade que
até então a vida lhe negara. Viveu o amor correspondido, finalmente! As
primeiras sensações, o primeiro beijo, os ciúmes e a separação.
Depois outro
amor e a descoberta da traição, leviandade e as marcas que atos imaturos deixam
em nós. Desilusão.
O brilho do
recomeço, do despertar do interesse recíproco e da dor de ter sido trocado como
se fosse um objeto de menor valor mercantil.
E assim, num caleidoscópio
realístico, sua “outra vida” se desenrolava. E viveu recomeços mais românticos
e também finais mais trágicos. A cada “vida” sentia no âmago do seu ser as
vilezas da alma humana. O sofrimento sempre parecia insuportável, até que um
pior sobrevinha.
Após todo esse frenesi mágico e
doloroso da vida paralela, viu-se caminhando para o mar para morrer e fugir
daquele suplício. Não daquele que conhecia da “vida real” e intitulava como
solidão (por não ser correspondido); mas um de proporções maiores, uma dor
tangível e pulsante – o sofrimento por perder seu lado humano mais sensível,
por não acreditar mais em seus semelhantes, por perder a fé na humanidade.
Em cada
pessoa vira surgir vários demônios destruidores que depois riam seu riso
esganiçado e sarcástico, a debochar da inocência e credulidade de quem buscava
a felicidade, essa eterna ilusão.
A
luz do sol matinal brincava na areia e concedia um agradável calor a sua pele.
Arthur despertou sozinho na praia, confuso e alquebrado. Aos poucos recobrava a
memória e seu coração não deixou de bater indiferente ao que, de certa maneira,
vivenciou na noite anterior.
Mas
então sobreveio uma paz nunca antes experimentada, e a revelação se fez por
completo. A partir desse momento não iria mais maldizê-la ou cortejar a morte.
Entendeu que sua companhia era a mais preciosa a mais injustamente injuriada de
todos os tempos. Iria aprender a andar de mãos dadas com ela, a compreendê-la
melhor, a lhe dar o devido valor.
Próximo
ao seu corpo viu o marcador de livros com os dizeres de “siga-me” de um lado, e
de outro, “solidão”- a presença que nunca faltava, a companhia sempre presente
e que ele insistiu por muitos anos em não enxergar.